sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Ancestral

As mãos põe a mesa enquanto a luz declina nas cortinas da sala.

Entre a louça e os talheres, a mulher contempla os vestígios do dia. Usa vestido longo, um leve casaco de lã.

O rosto sereno revela o sentimento do dever cumprido.

Ao fundo, sobre a cômoda, fotos de parentes há muito falecidos e descendentes sempre bem-vindos.

Aperto nos abraços, carinho nos beijos fraternos, cabelos desfeitos; no seu sorriso, um bem-querer.

Mas no claustro da mulher, bem lá no fundo, há rios de lembranças, memórias represadas bradando por libertação. Sonhos furtivos, cada vez mais intensos...

Era tempo de sonhar e, sobretudo, lembrar-se dos sonhos. Era tempo, mais que tempo.

Ela era uma menina, quisera ser mulher. Mas talento não tinha para coisas práticas e pouco sabia sobre o amor.

Lembrava das coisas da infância, das brincadeiras simples no quintal; lembrava-se da adolescência, dos primeiros e únicos projetos a namorados.

Queria estar só, queria ir pra longe, rever sua filha, sua mãe... seu pai, seu marido; sim, mesmo ele.

Queria sumir, mas de sumir jeito não tinha. Tinha, quando muito, uma saída lateral: algumas horas de alforria, de fuga noturna, ves-
pertina ou matinal.

Sonhava com o céu, mas o céu tardava incerto.

Tinha a neta, o filho, os cachorros, a gata;
era ainda uma figura matriarcal.

Na linha tênue entre o franco desespero e a viva esperança, ela caminha deixando um rastro furtivo na areia que a cada dia o
mar enleia e de soslaio vem apagar.

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