quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Saudades do Mar


O mar que me chama de longe
é o mar que eu vivo a sonhar
de noite eu deito na curva
que desce daqui para o mar
Não posso ficar muito longe
o mar ruge a me chamar
ecoa o balanço das ondas
até onde eu posso enxergar

A noite dança feiticeira
de prata o espelho da lua
me lança no chão pela areia
me envolve em seu puro vagar
O mar é meu chão minha sombra
é meu amigo profundo e sincero
a areia é onde descanso do amor
desse imenso tear
O mar ninguém tenha comigo
sou eu seu primeiro lugar

Que vale ser bom e ser vivo
que vale ser bravo e ser bicho
o mar vem descansa comigo
molhado, eu descanso do mar
O mar, vou-me embora nem ligo
mentira, me atiro no mar
do mar, se na terra prossigo
sou peixe com dom de voar

Clara Luz


Os muros em paz
de branco caiado;
lanternas na noite
saúdam o chegado.

O arlequim
não tem problema,
seu mundo
é todo outro sistema.

Sente o corpo
atracar:
os braços, terra;
os olhos, mar.

Estrela


Mas as flores são precisas,
tão vermelhas e precisas,
gazelas rúbeas e saudade
do meu sangue a despertar.

São seis acres de ar
e um de oceano
onde as aves vão pousar
quando acabarem as ilhas.

E assim ao meio-dia
se merecer
sem ter um dia
em que ela me elegia,
me elegia, me elegia.

Evocação Litorânea


Quarta e feira
quantas vontades eu tive
na quarta, a feira
e mesmo assim se vive

Volteios, quebrantos
quem te viu todo dia
os silvos, encantos
de calma agonia

Ó diga quem torna
quem traz-me de volta
tuas curvas ranzinzas
tua uva chuveira
teus cães, minha lata
quarta-feira-de-cinzas

A ira dos homens
que vem me acordar
me deita e me trai
eu tento te achar
(um galo adoentado
na noite ainda já)

No meio-dia se mente
e se diz a verdade
a ira dos homens
é nossa comadre

Na orla de areia
espelho de luzes
cavalgam os carros
se deitam as cruzes
(são belos, velozes,
os avestruzes)

Foi no verão
já nem lembro mais
insano ao som
dos teus loucos ais

Neste Dia


Neste dia, vem a tristeza
Meiga senhora, me visitar
Vem me dizendo que sente muito
Mas já não pode me acompanhar

Eu vou sair por aí
De braços com a felicidade
Pois a tristeza foi embora
E não deixou saudade

Andreas Bayas e Paulo Som, 2002

Ódio na Calçada


Eu aqui estou em casa,
neste pouco e mero chão,
os pedaços e as pessoas,
já lavei da minha mão.

Já provei tanger mulheres
e ora quis ser rei no vão,
hoje guardo bem-me-queres
longe do meu coração.

Sou repulsa, sou errante,
sou corcel na contramão,
e, sentado, leso, esquivo,
odeio tudo como o cão.

Onde estás, João Infante?
Onde estás, Sebastião?
Quero ver o teu semblante
ao explodir o avião.

Quero ter contigo um trato
imortal e sem perdão:
que sejas sempre luz em vida
e que, no mais, não sejas não;

que arremedes pelo fio
e subas amplo na calçada,
e enquanto houver estio,
estejas sempre na estrada

para que, de outros reinos,
tragam, carros e cavalos,
a entreter-te, errante rei,
outros reis e seus vassalos;

e que estejas sempre vivo
pra que não se acomodem,
quantos mandes ao inferno,
eis que até os reis explodem;

e que morras, sempre, em vida,
mas que não te toque a morte,
pois o ódio é teu destino,
o desamor e a pouca sorte.